Segurem-me estou inquieto
o meu sangue congelado estremeceu
gemeu e estava mudo, depois arfou
olhou para ela e sossegou
já descongelado
Estou inquieto porque o vento deixou de ser de ar
é corpo de mulher e nunca pára de invadir
de corroer, de frestas abrir, de velho e novo me fazer
e penetrar
Estou inquieto porque o tempo que era feito de segundos
pára agora uma vez por segundo e a seguir repara
no segundo anterior ao que se segue até perder as regras
e deixar de ter tempo para ser tempo: o tempo passou
a ser mulher
E ela, que nem sequer tem tempo para existir tão fundo
como eu a existo a ela sem fundo de tempo
arrancou-me todos os tampos e estou descoberto,
estou esventrado, estou esfolado e de carnes e tripas à mostra
e quero esconder-me e não consigo, porque a mulher me mostrou.
E se estou inquieto é porque apenas me interrogo
será possível encontrar paz nesta inquietude?
Sou já tão velho, não faz sentido, nada no meu corpo condiz
com o que o meu corpo sente, que não abrange muito para além
dos meus vinte anos de carne, quando a carne era fresca
e a mulher estava longe e eu me divertia a amar raparigas
belas, cheirosas e bonitas, apetitosas e catitas, enfim,
todo o contrário daquilo que agora esta inquietação traz a mim.
Por isso peço às pedras, e aos ribeiros, e às arvores
e sobretudo aos pássaros que me impeçam de voar
acho que esta inquietação pode matar e estou tão vivo
seria pleonasmo, ou no mínimo a mais estúpida contradição
É que ela é bela, e eu estou lúcido, e simplesmente inquieto,
pois assustado com o meu sangue já em lava,
com o meu coração já parvamente vulcão,
com o meu sexo já automático, logo a seguir ao estágio
na oficina onde esteve em revisão
E estou inquieto, porque a mulher está longe,
e eu perto, e o céu está debaixo dos meus pés,
e no entanto nada voa porque merda, porque crueldade,
porque tudo é tanto e tanto é tão difícil, então
socorro, alguém me ponha os pés no chão
Estou inquieto, estou aberto, estou trancado e arrombado
o vento entrou e se fez fêmea no macho que trago a tiracolo
eu que de machos nada entendo e de fêmeas nunca aprendo
o essencial que é esperar que o vento amaine, eu sobressaltado,
assaltado por amor, estripado por feridas que não mais sararão.
Estou doente, estou tão lúcido, não é que o vento me sacuda
é o sangue que me envenena já, e se eu morrer que seja lenta
a morte com que agora vejo o mundo por esta lente
que me inquieta me descongela me obriga a ao mundo inteiro abraçar
pois já parti, já sou amante, já nela me consumi, já fervo como diamante
e a mim próprio frente ao vento jurei tudo lapidar.
Por isso peço se ainda algures alguém me ouvir:
falta-me o mergulho. Tragam-me o mar.
Manuel Cintra, 9 de Julho de 2009.
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